domingo, 24 de outubro de 2010

ESPIRITUALIDADE, CULTURA DE PAZ E O DESAFIO URBANO

Por Jamieson Simões.
Qual não foi minha expressão de perplexidade ao constatar o óbvio: A Espiritualidade no contexto urbano é um desafio vivenciado por todos. Somos parte de um povo muito religioso; mesmo com o crescente número dos “Sem-religião”, ainda assim somos um continente de gente religiosa das mais variadas matizes, africanas, ameríndias, européias e orientais inclusive.
Mas ser religioso não implica necessariamente em espiritualidade, digo isso com muito pesar, mas historicamente a religião expressa um jeito de vivência que não dialoga, nem propicia um exercício, uma prática voltada para a construção de uma cultura de/com/para a Paz, peço licença para citar um exemplo crasso – Os Jesuítas, que com sua metodologia ortodoxa “catequizavam” os habitantes primeiros deste chão à cruz e a espada.
O que estou tentando afirmar é: Não basta se religioso, nem basta ter uma experiência mística, nem muito menos viver uma espiritualidade para contribuir na construção de um mundo melhor. É preciso tudo isso, mas é necessário que estes elementos do ethos humano respondam aos desafios atuais geracionais, de sustentabilidade, de enfrentamento às diversas violências contra mulheres, crianças e adolescentes prioritariamente, que urgem nesta amálgama de contradição chamada de cidade.
Neste sentido, proponho um debruçar-se sobre algumas questões que no meu julgamento são de primeira ordem para uma compreensão e militância de uma espiritualidade que evidencie no cotidiano uma cultura de/com/para a Paz. São eles:
ESPIRITUALIDADE E O CONTEXTO URBANO – A cidade já foi vista como lugar de oportunidade, sinônimo de crescimento, de desenvolvimento, de saberes e também lugar de cura, mas esse olhar foi paulatinamente substituído pôr outros antônimos, tais como: Centro de exploração, desigualdades, lugar de morte, sofrimento e dor. É exatamente aqui que a espiritualidade tem sua principal contribuição, valores espirituais como solidariedade, amor (mesmo que soe como vocábulo desgastado, afirmamos seu poder na construção de novas relações), sentimento de pertencimento a Um todo, podem transformar a ordem da cidade, gerando espaços onde se torna possível a dignidade, o diálogo, a tolerância; enfim, torna possível a vida plena para cada habitante e de modo especial para as minorias. Encontrar o DO (caminho nas artes marciais), o KI (Energia vital, para alguns ramos orientais) é imprescindível para que as pessoas possam se harmonizar com elas mesmas e com a cidade, é preciso um religare das pessoas com o contexto urbano, no sentido de transformação das relações e dos valores que regem a vida na cidade. Aqui penso que um caminho, uma metodologia possível para esta transformação reside em educar a espiritualidade e espiritualizar a educação.
ESPIRITUALIDADE PARA EDUCAÇÃO DA ALMA – Temos em nossa cultura variados exemplos de como perceber a vida e expressar esta percepção através da alma e dos sentidos, lanço mão do vulto cultural de Patativa do Assaré para exemplificar como seria uma educação para a alma. A poesia e a música são metodologias que convidam a transcendência, feito as devidas ressalvas (Não se eleva o espírito, nem muito menos os valores escutando “A bicicletinha” ou coisa do gênero) podemos nos valer destes bens culturais da humanidade para a educação da alma. A poesia nos comunica um olhar diferenciado da vida, do amor, das situações, das perdas pessoais e coletivas, das saudades, dos lugares, sensibiliza o leitor e o convida graciosamente a partilhar de tais experiências, é um convite ao rompimento do que é comum, aparente, a poesia fala das coisas do coração, aquelas que apenas balbuciamos em ocasiões fortuitas, a poesia fala de nós mesmos, e por isso é universal e inclusiva, não conheço nenhuma Ode ao desmatamento, ou um soneto á violência, ou um repente que aluda à desigualdade das relações sociais com celebração, antes o faz como denúncia de sistemas desumanos e corruptos (vide vaca estrela e boi fubá, poema de Patativa musicalizado por Raimundo Fagner). Já pensou se as crianças em nossas escolas aprendessem a codificar os signos do alfabeto através de poesias e prosas? Nomes como Cecília Meireles, Raquel de Queiróz, Patativa do Assaré, Os Donatos na lista de autores das cartilhas? Imaginou uma educação assim? E a musicalidade? As rimas? A progressão dos versos seria diretamente proporcional a elevação das relações dentro e fora dos limites da escola. É preciso educar a alma para que esta venha a ser aquilo que mais aspira: ser humana, para humanos seres.
ESPIRITUALIDADE PARA EDUCAÇÃO DOS DESEJOS – Lembra das disciplinas espirituais? Jejum, Oração, Contemplação, Meditação, sempre fizeram parte do arcabouço das principais práticas espirituais em todas as religiões, e fora delas também. Estas práticas possuem a função pedagógica de educar nossos desejos, o jejum disciplina a boca, afinal, quem controla a boca, controla o restante do corpo e assim segue com cada disciplina educando uma parte de nós, que teimosamente insiste em não se submeter ao controle, antes é ávida por mais, sempre mais. Num contexto absurdo de concentração de renda e consumo, urge a disciplina dos desejos de posse:

Tenho minha própria religião. Freqüento a igreja das compras, onde sacrifico meu cartão de crédito em troca de objetos preciosos que me ajudam a circular pela vida. Mas quando nenhum objeto consegue me fazer descarregar a tensão, então busco o deus que eu criei em minha mente. Os que dizem que não rezam a nenhum deus ou que não tem religião alguma são uns mentirosos: Pergunta-lhes qual é a equipe de seus amores e descobrirás seu deus. (Kate Lockart, 21, UK – Orações, Ed. Paulus, 2000).

Não é a toa que os shoppings construídos em nossa cidade são como catedrais, onde se celebra a uniformidade em detrimento da diversidade, o acúmulo em detrimento da partilha, a estética em detrimento da ética. Educar os desejos e não negá-los, e a tarefa das disciplinas espirituais, nos auxiliando a encontrar um equilíbrio que torne possível a sustentabilidade da vida humana e do planeta.
 ESPIRITUALIDADE QUE LEVE EM CONSIDERAÇÃO A CONDIÇÃO HUMANA – Não consigo precisamente apontar como foi a construção do ideal espiritualizado comumente apresentado, mas fato é que a idéia do isolamento, o distanciamento da realidade, a negação dos desafios formam a matriz equivocada daquilo que aqui chamamos de espiritualidade, acredita-se neste imaginário em homens e mulheres extra-humanos, semi- divinos, capazes até de atos incríveis à nossa realidade. Esta espiritualidade equivocada não serve à construção de uma cultura de/com/para a Paz, visto que está alienada da vida, das pessoas, do divino. A espiritualidade que fortalece os vínculos e a pertença comunitária leva em consideração a condição humana que marca indelével de contradição, paradoxo, dialética e dialógica de nossa existência. Somos um devir, que ocasionalmente se apresenta no presente, mas que se torna real no futuro, estamos em construção, e a espiritualidade deve elevar o ser humano à sua potência máxima de humano-divino, ao mesmo tempo em que convida à transcendência, convida também à transformação de sua realidade e entorno, afinal, onde os pés pisam, a cabeça pensa e o coração ama, é aqui onde a espiritualidade faz a aliança entre o efêmero e o eterno, entre passado, presente e futuro, entre vida e prática, fé e engajamento político, aqui no tempo que se chama hoje, nos confrontamos com aquilo que somos e aquilo que devemos e queremos ser, e não apenas confrontar, antes apontar caminhos possíveis e coletivos para a construção deste ser humano, que em dores de parto está para nascer.
ESPIRITUALIDADE QUE FORTALEÇA A RESILIÊNCIA – Resiliência para Leonardo Boff “é a capacidade de não deixar que as coisas ruins da vida tenham a última palavra”. Gosto desta definição, ela alude á uma verdade espiritual chamada de Esperança, é aquela cisma matuta de pensar em como uma realidade hostil pode ser mitigada, é um jeito teimoso da vida de insistir na existência e não há nada mais sagrado e valioso que a vida. A espiritualidade fortalece esta capacidade comunitária e pessoal de pensar saídas, coexistência com desafios que extrapolam suas capacidades de resposta imediata, mas ainda assim resta esta teima em seguir com a vida. A figura do sertanejo que enfrenta a seca, ano após ano, ciclo de verde, ciclo de seca, mas basta o cheiro das águas e a caatinga em festa reverdece, e a vida vence sempre, seja na cheia ou na estiagem esta gente resiste, resiliente, às vezes até resignadamente, mas afirma sua luta, sua terra, seu trabalho. Também é assim na urbanicidade com os “casqueiradores” que no lixo dos que tem, encontram a subsistência sua de cada dia, com suas carroças enfrentam e vencem o demônio do trânsito, vencem a fome, superam o cansaço e arrancam o mínimo de dignidade, arrancam desta sociedade que indiferente teima em não lhe assumir como sujeito de direitos, agente de transformação e contribuição ecológica. A espiritualidade caminha com a vida e não pode ser alheia as dores e desafios comunitários. E por ser caminhante e companheira da vida reforça positivamente a Resiliência, a fé em dias melhores para sempre em toda e para toda a comunidade.
Afirmo que onde a espiritualidade se expressa respondendo a estas e outras possibilidades a cultura de/com/para a Paz encontra um terreno fértil para florescer, afinal a cultura é a tecelagem de muitos fios, família, valores, música, oralidade, arte, comida, bebida, rituais. Dentre estes fios a espiritualidade se entrelaça com aqueles que agregam valor e protegem a vida, é no altar da existência que se encontram a cultura de/com/para a Paz e a espiritualidade, que não é utópica, antes é realidade em muitas pessoas e comunidade, que aprenderam a resolver seus conflitos, a lidar com suas diferenças, sem prescindir da violência como mediadora do direito.
Nas periferias de toda grande cidade há de haver um refúgio, um nicho de resistência, que através de uma vivência espiritualizada irradia uma cultura, um modus vivente de Paz, com Paz e para a Paz. Quem tem olhos para ver e ouvidos para ouvir, verá e ouvirá.

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